segunda-feira, dezembro 08, 2014

Caligrafia

O meu professor de Árabe tem um trauma de infância. Esqueçam os monstros, os bichos-papões, os polícias, os pais severos e a educação pelo cinto. Aprender a caligrafia arábica era o pesadelo de todas as crianças árabes. Começava com a pena a mergulhar no tinteiro e o treino diligente, primeiro, para que não se derramasse uma gota que fosse daquele líquido negro que viajava no bico do utensílio afiado que iria materializar a linguagem. Ofício para exímios, portanto. Depois, a verdadeira prova: escrever da direita para a esquerda sem borrar letra-a-letra, o que se acabava de escrever. E, nem sempre, o mata-borrão obedecia, pelo contrário, parecia fazer troça dos mais ingénuos. O melhor aluno era aquele que conseguia a proeza dos desenhos alfabéticos sem mácula no branco onde se escrevia. E tudo isto com toda a delicadeza que as letras árabes impõem. Desenhos simbólicos que parece que dançam no papel. Porém, uma coisa é a letra árabe isolada, outra é a ligação que essa letra tem com a letra seguinte para formar uma palavra, e que pode ter ou não movimentos (harakat) – mais ou menos o equivalente às vogais. Isso implica símbolos específicos em cada letra. Ufa! Eu explico: imaginem a palavra casa, que em árabe diz-se “bayt”, isto é بيت , mas se quisermos as letras isoladas teríamos B= ب Y=ي T= ت
É menos complicado do que aquilo que parece. Mais complexo era, sem dúvida, o exercício que deixou marcas na memória de Abdel, o professor. Um exercício para expor desastrados. Eu teria com certeza falhado a tarefa. Até porque, se bem me lembro, a minha perícia para escrever em cadernos de duas linhas estreitas, para treinar a caligrafia (lembram-se?), era já per si, um pesadelo a que tentava esquivar-me com técnicas avançadas: Ah! Esqueci-me! Debalde. Os complôs doméstico e escolar estavam instaurados, como conspiração de espionagem apertada. As técnicas de moralização também não eram as melhores e, entre ouvir que tinha uma caligrafia “pouco apresentável” a um “horrível” sincero de alguém, tentei, pois, ser mais diligente, surripiando a caneta de tinta permanente do meu pai. Já que tinha de escrever, que fosse com uma novidade. Achei mágico o mergulho daquela ponta afiada num frasco de tinta índigo. Fiz por isso, um admirável e competente borrão, que hoje, se o tivesse guardado, poderia expor, quiçá, numa galeria de arte. Ou até mesmo teria, eventualmente, inventado um novo e pioneiro teste de borrão psicanalítico, muito útil aos seguidores do senhor Hermman Rorschach, psiquiatra suíço dos séculos XIX e XX, que certamente analisaria nesta imagem, a hipótese projetiva da minha personalidade hiperativa, com propensão para a desobediência. Não recordo, por ora, qual o castigo que me foi aplicado pelo derrame da tinta permanente – talvez o de ter que escrever horas a fio em cadernos de duas linhas, pois desde essa época a minha caligrafia tornou-se irrepreensível. Não obstante, nas aulas de árabe escrevo a lápis e asseguro que, até ao momento, não houve quaisquer manchas desastrosas no caderno. Qualquer dia arrisco a tinta permanente.

* Crónica publicada a 26 de Novembro de 2014 no Porto24, rubrica do Bairro dos Livros, Culture Print, intercalada com os cronistas Jorge Palinhos, Rui Manuel Amaral e Rui Lage. 
 
Bio| Vanessa Ribeiro Rodrigues é jornalista, escritora, documentarista, viajante. Nasceu no Porto, morou no Brasil e na Jordânia. O que lhe importa é reinventar a cor da linguagem, caçar histórias. É autora do livro “O Barulho do Tempo” e tem vários contos e poemas publicados em revistas literárias. Escreve segundo o novo acordo ortográfico.

1 comentário:

Cris =) disse...

Uauuuu! Estás a aprender arábe... corajosa!

Beijos e Bom NAtal ;)